Por Rafael Ferreira
Em 2016, O Menino E O Mundo, do diretor brasileiro Alê Abreu, concorria ao Oscar de Melhor Animação. A torcida do lado de cá foi grande, mas infelizmente não foi dessa vez que o Brasil levou uma estatueta para casa, mas isso tem um lado positivo, mostra como a animação brasileira está ganhando seu espaço, e não só isso, mas a animação independente também. 2017 marca os 100 anos de animação no Brasil, e estou aqui para falar de um destes representantes, Até Que A Sbørnia Nos Separe (2013), do diretor gaúcho Otto Guerra, que foi um dos filmes responsáveis por me apresentar a este universo de possibilidades.
Sobre Otto Guerra, encontrei um capítulo no livro Animation Now! da editora Taschen, edição de 2007, que irei traduzir e transcrever:
“Otto Guerra pertence ao dinâmico grupo do cinema de animação no estado do Rio Grande do Sul. Com sua diversa carreira que inclui filmes publicitários, institucionais e suas comédias de humor negro, ele se tornou um nome de referência para a animação underground no Brasil, e o caminho distorcido dos seus filmes ganhou um grupo de seguidores.
A palavra “guerra” significa guerra em português*, e Otto Guerra faz jus ao nome. Em 1978 ele armou suas trincheiras estabelecendo sua companhia Otto Desenhos Animados. Desde então ele tentou atingir a cultura de massa e trazer temas infantis com sua maravilhosa sátira. Novelas, trailers de cinema e mitos do western levaram chumbo em seus filmes. O filme Rocky e Hudson, uma saga sobre dois cowboys mimados, homossexuais, e esquizofrênicos, se tornou um filme cult da animação brasileira.
Otto Guerra deve seu início no cinema a um curso que teve com Félix Follonier, da Argentina. Até aquele ponto ele tinha o hábito de desenhar tiras de quadrinhos para crianças inspiradas nas aventuras de Tintin, Blake & Mortimer, etc. Quando ele finalmente aderiu à imagem em movimento, ele começou filmando comerciais e colaborando em filmes brasileiros de sucesso, como Os Trapalhões e A Truma da Mônica. Ele mais tarde participou em festivais com suas próprias criações, que eram repletas de humor original e frequentemente continham narrativas inovadoras. Em Reino Azul, por exemplo, um tirano combate o tédio pintando todo o seu reino de azul.
Os avanços na computação gráfica balançaram os métodos de trabalho de Guerra, conforme ele adotava novas tecnologias para as suas produções para a internet e televisão; afinal, um bom guerreiro nunca rejeita novas armas para o seu arsenal.”
Otto assina a direção deste longa ao lado de Ennio Torresan Jr., animador e ilustrador brasileiro que levou seu trabalho para fora, desenhou storyboards para o Bob Esponja Calça Quadrada, e em 2003 foi contratado pela Dreamworks como story artist, cuja função é traduzir a ideia da história em sequencias visuais baseadas em anotações do diretor, roteirista ou o Head of Story, normalmente desenvolve seu trabalho a partir de storyboards. Torresan trabalhou em filmes como Madagascar 1 (2005), 2 (2008) e 3 (2012), Kung Fu Panda 1 (2008) e 2 (2011), Megamente (2010) e o recente O Poderoso Chefinho (2017).
A Sbørnia é um pedaço de terra com uma rica e excêntrica cultura, separada do resto do mundo por uma muralha. Quando a muralha vai ao chão, as terras pacíficas e paradas no tempo são atingidas pela modernidade vinda da cidade grande. Os conflitos causados pelo violento choque cultural bagunçam a vida dos sbornianos, principalmente dos dois protagonistas, uma dupla de músicos, Kraunus e Pletskaya. Este último vive um amor proibido com uma moça da cidade, cujo pai está ocupado fazendo dinheiro enquanto explora a Bizuwin, uma planta regional, para transformar numa marca de refrigerante de sucesso.
Essa doidera que acabei de descrever foi “livremente inspirada em Tangos e Tragédias” (como diz no pôster), uma apresentação teatral e musical escrita por Hique Gomez e Nico Nicolaiewsky. A peça e os personagens foram criados em 1984, apresentadas na temporada de verão no Teatro São Pedro em Porto Alegre. Os personagens Kraunus (Gomez) e Pletskaya (Nicolaiewsky) teriam fugido do fictício país chamado Sbørnia, ligado ao continente por um istmo, o motivo pelo qual o país não está no mapa é porque o mesmo foi separado do continente e vaga à deriva pelos oceanos. Tangos e Tragédias é muito popular na região sul, portanto, se você não mora no Rio Grande do Sul e nunca ouviu falar no espetáculo, não se sinta culpado, além de Porto Alegre, Kraunus e Pletskaya também se apresentaram na Argentina, Colômbia, e Equador, conquistando o público apesar do regionalismo. Na peça, os dois músicos descrevem a sua peculiar cultura e costumes para o público, tais como a cusparada e a lambida no rosto como sinal de afeto, dormir de ponta-cabeça, o machadoball, a dança que mexe apenas a cabeça, e até mesmo uma língua fictícia, que me lembra muito o Nadsat criado por Anthony Burgess para Laranja Mecânica. Uma curiosidade: a palavra Sbørnia vem do italiano, refere-se a uma noitada repleta de bebedeira, farra e orgia. Vale constar que 1984, época em que o espetáculo foi criado, o Brasil vivia um momento ruim em sua história, como a ditadura militar e o movimento das “diretas já”.
Hique Gomez e Nico Nicolaiewsky dublam seus respectivos personagens na animação… bem, quase isso, uma das piadas recorrentes é que o personagem Kraunus é sempre interrompido quando vai falar algo. Além deles também faz parte do elenco André Abujamara (músico), Arlete Salles, Fernanda Takai. Talvez a dublagem seja o ponto fraco deste filme, me desculpem, fãs da Fernanda Takai e Pato Fu, mas a voz dela não foi feita para isso. Eu assisti a versão com um máster primário e tive dificuldades em ouvir o que ela falava, e mesmo a versão que foi para o cinema não melhorou muito.
Até Que A Sbørnia Nos Separe trata de um tema importante, a interferência cultural, como explica um dos criadores, Hique Gomez, “a Sbørnia corresponde a um pedaço imaginário que as pessoas têm no Brasil, um país de imigrantes. Mesmo quem não é imigrante, é estrangeiro na sua própria terra. Todo mundo tem a Sbørnia dentro de si”. Muito bem apontado por ele, é difícil definir o Brasil e o seu povo em um arquétipo – o que chega mais perto disso é o meme “hue br”, sad but true – pois somos uma mistura de diferentes povos, vindos de lugares distintos, fomos colonizados por portugueses, espanhóis, depois vieram os holandeses, franceses, e ingleses, mas hoje em dia temos pessoas do mundo inteiro morando no Brasil.
Vivemos numa era globalizada, fronteiras geográficas não representam tanta distância física ou cultural, empresas multinacionais fazem parte do nosso cotidiano, podemos fazer compras num Carrefour ou Fnac, ambos franceses, lanchamos num Mc Donald’s ou Burger King, e tomamos uma Coca-Cola, todos dos EUA, dirigimos carros da Volkswagen (Alemanha), Fiat (Itália), Toyota (Japão), Peugeot (França), roupas, calçados, eletrodoméstico, quase tudo o que consumimos vêm de origem externa, não apenas coisas palpáveis mas o intangível também, mais da metade da programação dos nossos multiplex são de filmes hollywoodianos, nossa playlist pode ter músicas de qualquer lugar do mundo – na minha você encontra da Finlândia, Alemanha, Holanda, Noruega, etc., gosto de citar como exemplo o Trio Mandili, três cantoras da Geórgia, na Europa Oriental, que está conquistando a internet, eu não entendo nada do que elas cantam, mas mesmo assim abracei este estilo tão típico do país delas –, nossa televisão é forjada com moldes estrangeiros, e no passado os enlatados americanos preenchiam as grades de horário.
A literatura é prova de que o fato de eu morar no Brasil, não me impede de ler, gostar, e me identificar com obras de autores estrangeiros como Dostoiévski ou Nabokov (ambos da Rússia), Tolkien ou J.K. Rowling (ambos ingleses), George Orwell (indiano, mas com nacionalidade inglesa), ou mangás japoneses. Até agora só falei da influência que sofremos, mas o Brasil também exporta certos produtos, e até a sua cultura, dentre os nossos representantes do cinema no exterior estão Fernando Meirelles, José Padilha, e Carlos Saldanha, minha intenção é ressaltar como a cultura exterior transformou a nossa, esse assunto é na verdade muito extenso, estou apenas tocando na superfície. Certa vez ouvi uma frase relacionada à catequização dos indígenas no Brasil que se encaixa neste contexto, não sei dizer a fonte, “a melhor forma de se acabar com uma nação, é acabar com a sua cultura”.
Uma cena que aborda a invasão cultural de maneira muito sutil é esta em que Kraunus leva sua família para uma tarde na praia, e chegam pessoas do continente.
2008 foi a primeira vez que ouvi falar sobre este filme, até então se chamaria Fuga Em Ré Menor Para Kraunus e Pletskaya. Conheci por acaso a produtora Marta Machado enquanto ela aguardava o início de uma rodada de negócios, trocamos algumas ideias e ela me mostrou alguns desenhos, pencil tests deste filme. O objetivo dela era fazer parcerias com produtoras e animadores goianos, e de outras partes do Brasil, para trabalhar à distância nesta produção. Seis meses depois, surge uma oportunidade de aprender a arte da animação, num curso trazido pela Márcia Deretti, que fora produtora no estúdio do Otto Guerra, na época do Wood & Stock: Sexo Orégano E Rock N’ Roll (2006).
Em 2012, a equipe já havia concluído toda a animação para o filme, que mudara seu nome para Até Que A Sbørnia Nos Separe, e o mesmo se encontrava em pós produção. Nesta etapa, o trabalho dos animadores não é mais necessário, alguns aguardam o próximo trabalho, vão atrás de outro, ou voltam para casa, Wesley, um dos mais talentosos do estúdio – o próprio Otto quem diz –, optou por esta última, ele morava na mesma cidade que eu, acabamos trabalhando juntos na Escola de Animação da Márcia Deretti. Aprendi muito com ele, ouvi muitas histórias dos bastidores deste filme, vi algumas cenas que ele animara e usava como exemplo no curso, com o objetivo de inspirar novos talentos da animação.
No final daquele ano, a Escola realizou uma oficina de direção de arte com Eloar Guazelli, que trabalhara nesta função no Sbørnia. Tivemos mais acesso ao material do filme, concept art, model sheet, storyboard, e o animatic do filme completo. Vamos por partes: acredito que nem todos os leitores conhecem, mas os grandes estúdios de animação como Disney, Pixar, Dreamworks, e Ghibli, lançam o art book do seu respectivo filme, ou seja, um livro que contém todo o processo criativo da produção, dos primeiros rascunhos feitos em guardanapos, evoluindo até chegar ao personagem que conhecemos, estudos de cores, de poses, de expressões faciais, aquarelados ou em giz de cera, finalizados ou não, design de objetos, layouts de cenas, tudo o que mostra a arte antes de ser levado à tela, é um objeto de desejo de quem trabalha na área, e infelizmente o preço desses art books é meio salgado.
Para esclarecer outro conceito, model sheet é um guia do personagem, desenhado em várias poses, expressões, para servir de referência ao animador. Em sua oficina de direção de arte, Eloar Guazelli nos mostrou TODO o material que ele produzira para o filme, que ainda demoraria para ser lançado. Vimos de antemão o estádio que ele criara para o esporte bizarro que se pratica na Sbørnia, os uniformes dos dois times, a arquitetura local, a praça principal, o interior do bar onde os protagonistas se apresentam, o quarto do Pletskaya, a casa do Kraunus, enfim, tudo o que antes só existia na imaginação das pessoas que assistiam às peças de Tangos & Tragédia e dos criadores desta, que colaboraram em peso com o filme. Guazelli guardava todo este material com o objetivo de lançar o art book do filme, mas infelizmente este livro acabou não vingando.
Além de tudo isso, Guazelli nos mostrou várias cenas do animatic do filme. Um animatic é uma montagem prévia, feita a partir do storyboard, ou da animação com poses chave, cenas ainda não coloridas, cenas faltando efeitos, e cenas já finalizadas, tudo isso misturado no mesmo “pacote”, dessa forma o diretor pode ver o ritmo do filme. Na minha opinião, o filme anterior do Otto Guerra pecava nesta questão, a história não se desenvolvia, a animação ficava muito tempo parada, o ritmo não era bom, mas vendo este animatic, fiquei admirado com a evolução do diretor, a montagem era dinâmica, nada era excessivo, nada faltava, as piadas funcionavam, a narrativa funcionava, e a animação estava muito bem feita. Minha única ressalva era uma sequencia de sonho do Kraunus, que parecia desnecessária, mas como o animador me comentou, ela mostra como a interferência cultural afeta a mente do personagem, e que o diretor cogitou deletá-la. Esta cena faz mais sentido na versão finalizada do filme.
Dez meses depois desta oficina, Até Que A Sbørnia Nos Separe já estava circulando pelos festivais, tive oportunidade de vê-lo num evento que acontece todo ano em diversas cidades simultaneamente no dia 28 de outubro, o Dia Internacional da Animação. Sempre que posso, evito ver trailers, ler notícias, para não ter spoiler de um filme, mas neste caso tive spoiler de toda a obra, ao invés de estragar a experiência – sim, ver um filme é uma experiência, e não um entretenimento sem sentido – tive uma experiência diferente com este, eu o vi tomar forma, conheci pessoas envolvidas, ouvi histórias dos bastidores, uma experiência para ser levada adiante, e que me influencia a querer fazer parte deste universo animado.
O lançamento do filme foi marcado por uma tragédia, Nico Nicolaiewsky, que interpretava o Maestro Pletskaya, falecera em 7 de fevereiro de 2014, 69 dias após o lançamento oficial deste filme, em 30 de outubro de 2013. Segundo o boletim médico a causa da morte foi leucemia mielóide aguda. O artista estava internado desde o dia 21 de janeiro daquele ano. A prefeitura de Porto Alegre decretou 3 dias de luto pela perda desse grande artista, a dor e a tristeza estava estampada no rosto do seu amigo e parceiro do palco, Hique Gomez, parecia ser o fim de Tangos e Tragédias, mas… a notícia boa é que Gomez não se afastou do palco, em janeiro deste ano teve o lançamento de uma sequência para Tangos e Tragédias, a peça se chama “A Sbørnia Køntr’Atacka”, ao lado de Simone Rasslan, que contracenava com Adriana Marques, cuja dupla também nasceu a partir do Tangos e Tragédias, Adriana faleceu em 2009. Simone interpreta Nabiha, pianista sborniana, e nesta nova peça, o Maestro Pletskaya retornara à Sbørnia.
Até Que A Sbørnia Nos Separe foi um dos destaques do Festival de Cinema de Gramado de 2013, onde fora exibido pela primeira vez, e ganhou o prêmio de Melhor Direção de Arte; esteve no festival de Annecy, na França, um dos mais importantes do mundo da animação; já aqui na nossa casa, como bem sabemos, os exibidores brasileiros não cedem muito espaço para filmes fora do circuito mainstream, ou que não tenham o selo Globofilmes de “qualidade” no caso dos filmes nacionais, assim, o filme não teve um grande alcance, felizmente encontrou seu espaço na TV a cabo, pelo canal Cinemax, vale a pena ficar de olho na programação para conferir esta obra.
Diferente do que acontece nos Estados Unidos, onde o cenário da animação já está consolidado, todos tentam ser Disney/Pixar, o Brasil precisa criar o seu próprio cenário e a sua identidade, o Sbørnia não se parece com os filmes destas megaproduções norteamericanas, na verdade não se parece com nada que eu tenha visto antes, e como comédia, não tem o humor datado como as comédias globais, ele faz o que Otto Guerra faz de melhor, um filme com humor ácido, inteligente. Além disso, a fluidez da animação, o cuidado com a direção de arte, e o foco que a narrativa tem em explorar os personagens deveria servir de base para novas e futuras animações nacionais.
Trazendo para o contexto atual, não podemos deixar de pensar no muro que o atual presidente dos Estados Unidos, Donald Tramp – o erro ortográfico é proposital, entendedores entenderão –, quer construir, ou melhor, reforçar, na fronteira com o México. O propósito deste muro é barrar a entrada de imigrantes ilegais, que segundo ele, levam seus problemas consigo, além de drogas, e crime para os EUA, e expulsar de seu país os que já estão lá, dirigindo taxi ou em outros empregos que ninguém almeja. Este muro não é apenas uma barreira física, geográfica, e comercial, é uma barreira que impede que o país cresça e aprenda com outros grupos étnicos, em contrapartida, os EUA é país que mais exporta sua cultura, sua postura de “superioridade”, seu patriotismo, Hollywood foi construída com base neste princípio. O muro de Tramp ilustra o bloqueio da sua própria cabeça dura, onde nenhuma ideia ou conhecimento novo entra, enquanto cospe todo tipo de merda.
PS: Pensei em incluir um vídeo do Tramp em comitiva falando sobre a construção deste muro, e como o México pagaria por ele, mas eu senti nojo.
* O livro contém os textos em inglês, francês, e alemão, portanto esta frase só faz sentido em outro idioma.