É preciso um vilarejo para criar um filho. Essa é uma tradução literal do provérbio africano It takes a village to raise a child, muito repetido em palestras sobre parentalidade e desenvolvimento de crianças. A máxima reforça a ideia que para se desenvolverem bem, os pequenos necessitam de uma comunidade com a qual possam interagir, viver novas experiências e crescer em um ambiente saudável.

A verdade por trás do ditado fica aparente em System Crasher, filme vencedor do Prêmio Alfred Bauer no Festival de Berlim. Dirigido por Nora Fingscheidt o longa nos apresenta à Benni (Helena Zengel), uma criança de nove anos que possui um comportamento agressivo e imprevisível. Vítima de violência infantil, a menina tem acessos de raiva e já foi expulsa de todas as escolas e abrigos por onde passou. Sua própria mãe a teme e, por conta disso, ela está sob os cuidados do serviço social da Alemanha. Ali um grupo de pessoas se junta para cuidar da jovem, entre eles Micha (Albrecht Schuch), que acompanha Benni para a escola, e Frau Bafané (Gabriela Maria Schmeide), assistente social responsável pelo caso.

Estruturado de maneira coesa, o longa nos apresenta uma história familiar de maneira não convencional. Todos nós conhecemos a narrativa da criança problema que precisa de ajuda para superar um trauma. Muitos filmes inclusive vilanizam tal personagem e focam nos dramas vividos por seus pais. Não é o que acontece aqui. System Crasher destaca a revolta de Benni e nos apresenta as feridas que originaram tal comportamento.

Conduzindo bem as emoções do público, a produção alterna situações incomuns de humor, como a que Benni xinga pessoas num parque, com momentos extremamente emotivos, vide a cena em que ela chama pela mãe na floresta.  Apenas por meio de seus gestos, a pequena personagem deixa claro que suas ações não são injustificadas. A violência que ela extravasa objetiva tapar o buraco gerado pela ausência da mãe. Benni nos lembra ainda que crianças também são pessoas e que devemos respeitar seus limites, assim como faríamos com um adulto.

Todas essas reflexões só são possíveis graças ao trabalho espetacular da pequena Helena. Suas crises de ira são homéricas e transparecem um realismo inegável. Quando não consegue mais gritar, a atriz mirim transmite apenas com um olhar a raiva e o desalento contidos no interior de Benni.

Outro ponto trabalhado fora do convencional é a relação entre Benni e Micha. Se normalmente vemos garotos problema sendo tratados por mulheres, aqui a jovem recebe doses de cuidado e atenção de Micha, que não tem medo de transparecer seu instinto paternal. Quando a dupla vai para a floresta, a fim de melhorar o comportamento da criança, a relação entre os dois se desenvolve e comunica uma verdade genuína ao espectador.

Micha educa Benni sem crueldade, dá carinho sem mimá-la, dá atenção sem sobrecarrega-la. Como qualquer um, ele também perde a paciência com as crises violentas da garota, mas consegue trabalhar com isso e, quando se excede, não tem vergonha em pedir desculpas. A sinceridade que emana desses momentos nos mostra que o processo de recuperação de um trauma não é fácil nem rápido. Vítima de agressão doméstica quando bebê, Benni nunca recebeu cuidados tão frequentes. Por vir de um lar desestruturado, violência foi tudo o que ela recebeu, logo é tudo que tem a oferecer.

Aos poucos, Benni abre um espaço em seu coração para Micha. Se no começo ela o chamava apenas de cuidador, com o tempo passa a trata-lo pelo nome, mostrando que agora confia nele. A outra pessoa que ela chama nominalmente é Frau Bafané, que ganha o coração do público ao protagonizar uma das cenas mais emocionantes do longa, onde exibe toda a sua dedicação ao caso da pequena.

Tecnicamente o título também agrada seja por seu excelente arranjo de som, sua fotografia clara ou seus tons vibrantes. Chamam a atenção a câmera, sempre na altura da jovem protagonista, e a montagem, que performa elipses temporais ajustadas, sobretudo nos acessos de raiva exibidas em tela como um turbilhão de imagens banhadas em rosa.

De uma força arrebatadora, System Crasher, mostra as atitudes de uma criança que entende desde pequena o que é não ser querida. Ao mesmo tempo delicado e visceral, o filme lembra Os Incompreendidos (1959) e Alemanha Ano Zero (1948). Assim como estes clássicos, a trama de Nora Fingscheidt mostra as consequências de crescer em um ambiente inóspito e reforça a ideia de que realmente é preciso um vilarejo para criar um filho.

 

*Essa crítica faz parte da cobertura da 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

System Crasher

 

Ano: 2019
Direção: Nora Fingscheidt
Roteiro: Nora Fingscheidt
Elenco principal:  Helena Zengel, Albrecht Schuch, Gabriela Maria Schmeide
Gênero: ​Drama
Nacionalidade: Alemanha

Avaliação Geral: 5