À primeira vista parece que filmes de horror são todos iguais. Um grupo de jovens vão para um lugar afastado para curtir, beber e ter relações sexuais até que as coisas começam a ficar estranhas e os personagens começam a morrer um a um. Mas não é bem assim. O gênero tem um leque infinito de possibilidades que permitem explorar o medo de diversas formas.
A palavra “horror” tem origem na junção dos termos vindos do latim horrere, que significa “ficar em pé” e do francês antigo orror que significa “arrepiar”. Juntando os dois ficaria algo como “cabelo em pé”. O gênero, apesar de estar a bastante tempo na sétima arte, não é nativo da película. Outras artes, como a pintura ou a literatura, já exploravam o medo bem antes. Quadros como Saturno devorando um filho, de Goya ou O Grito, de Edvard Munch, já evocavam esse espírito horrível.
Talvez uma das relações mais estreitas entre as artes, seja a literatura e o cinema. Relação que não está restrita apenas ao horror, obviamente, mas grandes clássicos do cinema de suspense e horror são adaptações literárias. A obra prima de Alfred Hitchcock Psicose (1960), é uma adaptação do livro de mesmo nome do escritor Robert Bloch. Ele teve, por sua vez, inspiração no caso real do serial killer Ed Gein, que também deu origem ao roteiro de O Massacre da Serra Elétrica (1974). Outro caso e dessa vez bem polêmico é a adaptação O Iluminado (1980). Este último, apesar de ser até hoje um filme muito aclamado pela crítica e público como uma das grandes obras de Stanley Kubrick, o escritor da obra original Stephen King, um dos grandes nomes do horror na literatura, não gostou da adaptação. A raiva foi tanta que ele resolveu filmar sua própria versão audiovisual da história e produziu uma série para televisão em 1997.
Ainda no universo literário, um escritor nascido no final do século XIX, publicou obras que se tornaram um novo subgênero do horror. Howard Phillips Lovecraft ou H.P. Lovecraft, foi responsável por concretizar o horror cósmico com uma força tão grande que afetaria o próprio cinema que nascia quase que nesse mesmo período.
H.P. LOVECRAFT – UMA CONTROVERSA FIGURA CRIATIVA
Até o final do século XIX, os contos de terror eram basicamente fantasia, com lobisomens, vampiros, fantasmas e coisas do tipo. Influenciado pela explosão tecnológica do período, que inclusive deu origem ao cinema, Lovecraft começou a misturar terror com ciência, com monstros de origem em outras dimensões e outros planetas. Outro diferencial é que em seus contos ele nunca mostra, ou melhor, descreve exatamente como os monstros são. Dão alguns detalhes a respeito e foca mais nas reações dos personagens às criaturas. Isso faz a tensão aumentar ainda mais nos leitores.
O seu trabalho mais famoso é O Chamado de Cthulhu. No conto, publicado originalmente em Fevereiro de 1928, depois do falecimento do seu tio avô, Francis Wayland Thurston encontra uma série de anotações e uma estátua deixados por ele que indica o culto à uma antiga criatura mitológica. Ela é uma mistura de homem, dragão e polvo tem mitos espalhados por todo o mundo e que ecoam sempre o mesmo canto: “Na sua morada R’lyeh, o morto Cthulhu, aguarda sonhando”.
Entretanto, Lovecraft apresentava nos seus textos diversas conotações racistas e anti-imigração. Muito vem da sua origem burguesa, protestante e puritana da Nova Inglaterra que foi acentuado após sua mudança para Nova York onde teve que conviver com pessoas diferentes do que estava acostumado. Ele dizia coisas como, quem não tinha a pele clara seriam pessoas inferiores. Muitos acreditam que os monstros da sua obra seriam a representação dos seus temores sociais.
“Nesse ambiente coexistem a atmosfera tenebrosa, que provoca tensão e agonia, e a atmosfera preconceituosa, que no mínimo vai provocar estranheza no leitor desavisado. Não há um esforço particular do autor para mitigar as passagens que contêm declarações de natureza racista e xenofóbica, e sua explicitude provavelmente provoca mais desconforto quanto mais distante a leitura se torna do período em que os contos foram escritos.” Nota do Editor em H.P Lovecraft – O Chamado de Cthulhu e outros contos.
Entretanto, recentemente o trabalho do escritor tem sido ressignificado e ganhado mais uma sobrevida em novos trabalhos audiovisuais. São os casos de séries como Carnival Row (2019 – ) e Lovecraft Country (2020) que utilizam o universo Lovecraftiano de forma contrária, criando alegorias e falando sobre racismo e preconceito. A animação Rick and Morty (2013 – ) também trabalha com o universo cósmico em seus episódios.
Lovecraft era um escritor, trabalhava com as palavras a fim de criar imagens na cabeça do leitor. Como aqui nós tratamos de cinema, que dava seus primeiros passos quando o criador do Cthulhu ainda era vivo, vamos tratar mais no lado cinematográfico do que o literário. A partir daqui, vamos trazer esse universo cósmico para a tela. Imaginando em como essa ideia é tratada num universo onde os sentimentos, as sensações são evocadas (ou deveriam ser) a partir das imagens.
O QUE É O HORROR CÓSMICO?
No horror cósmico ou cosmicismo, nós humanos somos insignificantes e indefesos perante a força do universo. Tentamos entendê-lo, mas acabamos falhando. As representações têm características para além do que podemos conceber e com nomes praticamente impronunciáveis (como se pronuncia Cthulhu, por exemplo?). Para complicar um pouco mais, essas criaturas não tem nenhuma simpatia pela humanidade e destroem até planetas por onde passam sem se importarem. Isso causa um medo inexplicável e sem possibilidade de enfrentamento.
O grande lance do horror cósmico é que o que acreditamos saber sobre qualquer coisa no universo não é nada perto do poder dele. Quando ficamos próximo de algo que seja diferente do que estamos acostumados, sejam criaturas sem forma definida ou forças que pareciam ser apenas história de pescador, as coisas fogem do controle a ponto de ser praticamente impossível tomar decisões no mínimo racionais. Isso faz com que ao fim, ou os personagens sejam mortos ou percam totalmente a sanidade.
Em O Chamado de Cthulhu, por exemplo, lemos como se fosse os resultados de uma pesquisa que aponta a existência de seres extra terrestres vindos à terra mesmo antes de existir vida. E que existem tribos que os cultuam acreditando que seu despertar no futuro pode trazer o apocalipse.
No cinema maior parte das produções não são adaptações diretas das obras de Lovecraft, mas da aplicação de conceitos que discutimos aqui. O diretor John Carpenter os utilizou em obras como Enigma de Outro Mundo (1982) e A Beira da Loucura (1994). O cosmicismo, outro nome dado para horror cósmico, também apareceu em produções mais recentes como a produção da Netflix A Aniquilação (2018) ou o terror cult O Farol (2019). Na segunda parte desse texto, iremos discutir especificamente algumas formas como o horror cósmico aparece no cinema.
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