Os números do segundo final de semana do filme Viúva Negra nos cinemas dos Estados Unidos foram mais um motivo de incômodo para a rede exibidora do país. Após uma excelente estreia nos cinemas, arrecadando 80 milhões de dólares nas bilheterias americanas em um lançamento simultâneo com o serviço de streaming da Disney+, o aguardado longa-metragem sofreu uma significativa queda de 67%  no fim de semana seguinte, a maior já registrada para um filme do Universo Cinematográfico da Marvel (MCU). Não demorou muito, e a Associação Nacional de Proprietários de Cinema (NATO), uma das principais representante das empresas exibidoras nos EUA, emitiu seu recado: “Isso demonstra que um lançamento exclusivo nos cinemas significa mais receita para todas as partes interessadas em cada ciclo da vida do filme.” Para a NATO, a culpa do desempenho morno de Viúva Negra nos cinemas dos EUA era da Disney+.

Black Widow': Movie Theater Owners Claim Disney Lost Money on Film - Variety

Scarlett Johansson em cena de Viúva Negra: desempenho do filme nos cinemas dos EUA tem gerado discussão sobre o atual formato de distribuição de conteúdos

Episódios como esse ilustram o quão imprevisíveis são os cenários para os cinemas não apenas na América do Norte, mas pelo mundo. Há pelo menos um ano e três meses, desde o início da pandemia do covid-19, os amados assentos em frente às telonas estão vazios ou sendo pouco frequentados Brasil afora, vítimas de um inesperado vírus e de uma compreensível resistência de boa parte do público em voltar a frequentar tais ambientes enquanto a vacinação segue a passos lentos e desiguais entre países. Desde março de 2020, salas fecharam, exibidores faliram, funcionários perderam empregos, lançamentos foram constantemente adiados e a inevitável pergunta sobre a sobrevivência de toda uma indústria tornou-se pauta frequente: os cinemas voltarão a ser como antes?

É óbvio que não se deve associar um possível agravamento ou alongamento da crise do setor cinematográfico diante do atual cenário de um vagaroso arrefecimento da pandemia ao receio que muitos amantes da sétima arte ainda têm em voltar aos cinemas.  No Brasil, por exemplo, com pouco mais de 20% da população totalmente vacinada, a situação ainda requer muitos cuidados e exige um contínuo respeito às medidas sanitárias recomendadas pelas autoridades de saúde.  Mas também é curioso pontuar como desde o início da flexibilização das regras de isolamento, os cinemas tornaram-se o “patinho feio” da história.

Enquanto shoppings, bares, restaurantes e outros estabelecimentos semelhantes voltaram a ser amplamente procurados por muitos clientes mesmo durante períodos consideravelmente graves da pandemia, as salas de cinemas espontaneamente acabaram adquirindo um suposto selo de periculosidade aumentada que nunca se confirmou, dados os rigorosos protocolos de segurança implementados pelas maioria das redes exibidoras: ambiente controlado, lugar marcado, sistema de ar condicionado com renovação contínua do fluxo de ar, redução da capacidade de espectadores, dentre outras medidas.  Protocolos que logicamente não têm como garantir um risco zero de contaminação (assim como local nenhum no planeta), mas que são comprovadamente eficazes na prevenção e podem ter uma fiscalização certamente muito mais assertiva do que nos outros ambientes mencionados. Até a data de publicação deste texto, não foram encontradas notícias sobre aglomerações causada pela reabertura de um complexo de cinema.

Não há resposta garantida para nada que envolva um vindouro fim da pandemia e um consequente possível retorno à normalidade dos anos pré-covid. Cenários como os das sessões de estreia de Vingadores – Ultimato, em 2019, que arrastaram milhões de pessoas às salas em diversos continentes, formando filas e bem-vindas aglomerações para um lançamento exclusivo dos cinemas, parecem pertencer a um passado longínquo. Apenas dois anos depois de Tony Stark derrotar Thanos e provocar catárticas reações de cinéfilos pelos complexos exibidores mundo afora, tudo mudou.

Se antes a discussão era sobre a alta porcentagem de salas que as superproduções hollywoodianas estavam ocupando nos cinemas, dominando a maioria das sessões e tirando o espaço de obras nacionais ou menos populares, a preocupação agora é a de quais dessas superproduções realmente chegarão, com exclusividade ou não, aos cinemas. Com o alcance global atingido pela Netflix, o lançamento da Disney+, o baixíssimo custo de assinatura da Amazon Prime Video, o crescimento da Globoplay e outras relevantes plataformas de streaming surgindo em uma frequência surpreendente, sendo a mais recente no Brasil a HBO Max, a única certeza, pelo menos a curto prazo, é a de que as telonas seguirão dividindo o protagonismo das exibições com telas de TVs, tablets e smartphones, como já vem acontecendo desde 2020.

Tenet, Mulan e a nova revolução do streaming

Como substituir a experiência de ver um filme em uma sala de cinema? O ritual da compra da pipoca, a seleção do assento favorito, a chegada com antecedência para assistir aos trailers, a imersão em um sala escura por cerca de 2 horas, sem a distração de celulares, notificações e conversas paralelas? É impossível. Mesmo quando a produção vista não é das melhores, o processo de sair de casa e ir até uma poltrona de frente para uma tela gigante é o que move e gera cinéfilos ao redor do mundo há muitas décadas, e não há serviço de streaming ou super TVs que possam tomar o lugar de uma vivência como essa. Mas diante da maior pandemia dos últimos 100 anos, escolhas antes impensáveis tiveram de ser tomadas para que rodas pudessem continuar girando e para que, dentre produtores, distribuidores e exibidores, nem todos saíssem perdendo tanto. Porque perder, todos perderam.

Why 'Tenet' Was the Wrong Movie at the Wrong Time - Variety

Christopher Nolan (à direita) dirige John David Washington em cena de Tenet: aguardado longa-metragem foi lançado nos cinemas quando EUA ainda passava por grave fase da pandemia

Após o início dos adiamentos das diversas grandes produções previstas para o primeiro semestre de 2020, como 007 – Sem Tempo Para Morrer, Um Lugar Silencioso – Parte II, Viúva Negra, e tantos outros de diferentes estúdios, foi a Disney quem inaugurou uma nova era do consumo de conteúdo audiovisual para amenizar os desastrosos efeitos da incansável pandemia. Mais precisamente no dia 4 de agosto do ano passado, o CEO da bilionária empresa, Bob Chapek, anunciou que o lançamento do aguardado live-action de Mulan , orçado em cerca de 200 milhões de dólares, aconteceria diretamente no serviço de  streaming da Disney+ com um preço a parte da assinatura. A decisão gerou revolta e foi mais um forte baque para os exibidores, que há meses já sofriam os efeitos de salas completamente fechadas e contavam com o filme para um sólido retorno de bilheteria. Para piorar, como o aplicativo da Disney+ ainda não estava disponível em diversos países, dentre eles o Brasil, muitos espectadores tiveram de esperar longos meses para poder assistir ao filme (por meios oficiais, claro).

Mas apesar de polêmica e relativamente inesperada por boa parte do mercado, a decisão da Disney também foi inevitavelmente compreensível. Apenas alguns dias antes, no fim de julho de 2020, a Warner Bros havia divulgado uma elaborada estratégia de lançamento para Tenet, o épico sci-fi de Christopher Nolan que era considerado por muitos como a “salvação” dos cinemas para a exorbitante crise causada pela pandemia. A produção, que já vinha sofrendo adiamentos recorrentes, enfim estreou no fim de agosto em cinemas de países espalhados pelo globo, e apenas no início de setembro nos EUA. Mas com grande partes das salas ainda fechadas e altíssimos números de mortes e contaminados sendo diariamente registrados, a estreia americana do filme teve um desempenho aquém do esperado e as incertezas aumentaram.

Não que a bilheteria total de Tenet tenha sido um fracasso, longe disso: foram 363 milhões de dólares arrecadados globalmente, segundo o Box Office Mojo , com enorme sucesso na China e Coréia do Sul. Mas quando comparada aos resultados dos prévios lançamentos do badalado diretor, como Dunkirk ($ 527 milhões), Interestelar ($ 701 milhões) e A Origem ($ 836 milhões), a diferença é latente.  Teria a Warner Bros queimado a largada lançando o filme nos cinemas em meio à pandemia? Como estipular um bom retorno de bilheteria em um cenário como esse? E como divulgar estes números sem parecer um fracasso?

Apenas alguns meses após o conturbado lançamento de um de seus filmes mais promissores em 2020, a Warner Bros tomou a decisão que chacoalhou a indústria como nunca antes. Em 3 dezembro de 2020, a empresa anunciou que todos os próximos grandes lançamentos do estúdio nos Estados Unidos seriam lançados simultaneamente nas salas de cinemas e também no serviço de streaming da HBO MAX. Títulos como o já lançado Mulher-Maravilha 1984, Esquadrão Suicida 2, Duna e Matrix 4, todos com gigantesco potencial para arrastar milhões de espectadores aos cinemas em época não-pandêmicas, iriam para a TV no mesmo dia em que chegavam ao cinema. A decisão irritou cineastas e, logicamente, exibidores, mas a Warner não voltou atrás.

Apesar do formato de distribuição internacional destes filmes variar , atualmente tanto os lançamentos da Warner nos EUA (pelo menos até 2022), como alguns filmes da Disney e de outros estúdios, vêm seguindo um modelo híbrido de exibição, e obtendo relativos bons resultados tanto para o streaming como para o mercado exibidor.  O aguardado Godzilla vs Kong, por exemplo, lançado no fim de março simultaneamente nos cinemas e na HBO Max, arrecadou 463 milhões de dólares globalmente, sendo 100 milhões apenas nos cinemas americanos. Já Cruella, exibido nas telonas e também na Disney+, também não fez feio, e já bateu a marca de 219 milhões de dólares de bilheteria mundial.

Enquanto a relação cinema-streaming ganha novos contornos praticamente a cada semana, aqui no Brasil, o mês de junho teve o melhor desempenho nas bilheterias desde o ínicio da pandemia, com grande parte das salas sendo reabertas e filmes de forte apelo comercial (Invocação do Mal 3, Velozes e Furiosos 9, dentre outros) finalmente sendo lançados. E se 2020 foi o ano em que os espectadores tiveram de se contentar apenas com o sofá de casa para assistir aos filmes, 2021 aos poucos nos mostra que o conforto da poltrona do cinema está mais perto de voltar à rotina de muitos deles.

É um recomeço para os cinemas.

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