Não sou um jogador assíduo, porém, em minha juventude era viciado em games. Na época do SNES não passava de apenas um passatempo, mas depois fui descobrindo outras plataformas, e com os jogos de computador percebi que os games podem ser mais do que simples diversão – assim como o cinema também não deve ser visto apenas dessa forma – alguns oferecem uma experiência tão poderosa quanto outras mídias como o cinema ou a literatura, na qual nos identificamos com o protagonista, sentimos o que ele sente, e mais do que isso, nós o vivenciamos e tomamos as decisões por ele. Um jogo que me fez chegar a essa conclusão é Silent Hill 2 (2001).
A franquia iniciou em 1999, seguindo a onda de jogos de horror para o Playstation, como Clock Tower, Alone in the Dark, e Resident Evil, a diferença é que Silent Hill focava no caráter psicológico, ao invés de focar na ação, além disso, a atmosfera do jogo foi muito bem construída usando uma deficiência a seu favor, segundo o diretor do jogo, Keiichiro Toyama, uma limitação técnica impossibilitava a renderização de todo o cenário, apenas os elementos mais próximos eram visíveis, a neblina foi acrescentada para justificar a falta de visibilidade, dessa forma você sentia “claustrofobia” mesmo estando num espaço aberto.
Não tive muito contato com o primeiro jogo da série, fui devidamente introduzido à franquia pela sua sequência, e conforme a história progredia, meu envolvimento aumentava. A trama deste é bem intimista, facilitando a imersão. Controlamos James Sunderland, que recebera uma carta da sua falecida esposa, pedindo para encontrá-la num local especial. Ao longo da sua jornada ele encontra criaturas como o Pyramid Head, enfermeiras demoníacas, e uma doppelgänger da sua esposa. Após a conclusão do jogo, fiquei horas refletindo sobre o que vivenciara no conforto do meu quarto, o Pyramid Head me lembrava uma tradição da minha cidade, o farricoco, que por sua vez representam os soldados romanos que prenderam Jesus Cristo, eles se vestem como carrascos; e durante o jogo encontramos cenários de execuções, como uma forca e um empalamento, e se este algoz persegue James, ele deve ter cometido algum crime; no final tudo faz sentido, as enfermeiras, as pistas, e até mesmo a sósia da sua esposa. A experiência se torna mais forte, pois nós estamos na pele do protagonista, e estamos tão confusos quanto ele, descobrimos as coisas ao mesmo passo que ele, enfrentamos os perigos juntos, e no final das contas é como se estivéssemos na mente de um possível psicótico*.
** Gostaria muito de continuar discorrendo sobre este game, mas o texto ficaria muito longo, e o foco aqui é a adaptação cinematográfica. Aproveito o espaço para dizer que o que foi e será dito são opiniões e interpretações pessoais, e haverá SPOILERS! **
Em 2005 foi anunciada a produção de um filme baseado neste game, e com os fiascos que foram Resident Evil (2002) – que chegou ao Brasil com o título “O Hóspede Maldito”, só não me pergunte onde era o hotel – e Lara Croft: Tomb Raider (2001) – vergonha alheia – nem me empolguei tanto. Me lembro das matérias que lia a respeito da produção, uma delas dizia que o filme teria três horas e meia de duração, outra dizia que não teria nenhum personagem masculino – eu imaginava o ator Ewan McGregor no papel do James e Cameron Diaz como Maria –, mas a minha decepção maior foi descobrir que ele não seria exibido no cinema de minha cidade, tive de esperar que este fosse lançado nas locadoras**. Vários meses depois, família e amigos reunidos em casa para assistir, e para a minha surpresa Terror Em Silent Hill (2006) é um filme de terror bem consistente.
Neste filme acompanhamos Rose da Silva, mãe de Sharon, uma menina que frequentemente tem episódios de sonambulismo que a colocam em situações de risco, em seu estado sonâmbulo ela menciona “Silent Hill”. Rose investiga e descobre que se trata de uma cidade no estado de West Virginia, aonde ela pretende levar sua filha na esperança de encontrar uma solução para este problema. Christopher, marido de Rose, se opõe a esta ideia, mas isso não a impede de prosseguir. Assim que entram na cidade, Rose se envolve num acidente de carro, e quando retoma a consciência, descobre que sua filha já não está mais lá, e assim começa sua busca por Sharon, enquanto se depara com os mistérios de Silent Hill.
Antes de iniciarmos nossa incursão pelo filme de Christophe Guns, vamos entender melhor o contexto, tanto do filme quanto do jogo. SH foi desenvolvido no Japão, mas o público alvo eram os americanos. Para quem não se lembra, houve uma época em que os filmes de terror produzidos em Hollywood eram refilmagens de filmes japoneses, porém, a maioria deles falhava*** justamente pela falta de adequação ao contexto cultural, Team Silent, a desenvolvedora do game, estava atenta a isso, sabiam que para ser abraçado pelo público ocidental, precisariam recorrer à sua cultura. Atualmente podemos ver a influência que SH exerceu em diversos filmes, livros, séries, e outros games, o que raramente nos atentamos é quais obras serviram de inspiração para os desenvolvedores, e assim “americanizar” sua obra. O game que tanto me marcou tem um enredo muito parecido com o do filme Estrada Perdida (1997) de David Lynch (se é que eu entendi este filme), e assim como várias outras obras deste diretor, SH também cruza a linha entre o mundo real e o outro lado e lida com dualidade; Enquanto o criador de Twin Peaks inspirou no quesito “mind blowing”, o autor Stephen King inspirou os desenvolvedores a introduzirem o elemento sobrenatural ao game, é impossível não se lembrar da neblina que traz monstros em O Nevoeiro (conto publicado em 1980. OBS: A adaptação deste conto para o cinema também traz Laurie Holden), o rampage de Carrie no baile em Carrie, A Estranha, (OBS: Jodelle Ferland, que interpreta Sharon e Alessa em Terror em Silent Hill, intepretara Carrie quando criança no remake feito para TV em 2002), a criança com poderes sobrenaturais como em O Iluminado (1977); O enredo no qual uma personagem entra num mundo mágico, e tem de percorrê-lo para poder sair dele pode ser conferido em Alice no País das Maravilhas (1865) de Lewis Carroll, e O Mágico de Oz (1900) de L. Frank Baum; Os games desta franquia são tão ricos em referências e detalhes, e mesmo que os fãs não percebam ou as conheçam, eles sentem e percebem quando algo não está de acordo, por isso, o projeto de um filme com uma base de fãs já solidificada não poderia ser entregue nas mãos de qualquer um.
Enquanto filmava O Pacto Dos Lobos (2001), o diretor Christophe Guns teve contato com o primeiro game da franquia, algumas horas imerso naquele mundo, Guns teve um insight de que aquela obra poderia ser adaptada para o cinema, porque havia uma carga emocional, ele se importava com o personagem Harry Mason na busca pela sua filha, esses elementos tornavam o terror genuíno. Guns apresentou a proposta para o produtor Samuel Hadida, que lhe perguntou “é possível sentir medo com um videogame?”, a resposta de Guns foi positiva e o convenceu a adquirir os direitos pela Konami. A distribuidora não estava tão convencida, mas a paixão de Guns pelo projeto falou mais forte no final, para convencê-los, ele preparou uma apresentação com cenas do jogo e um depoimento próprio dizendo o quanto este projeto significava para ele, o convencimento levou cerca de cinco antos, ele apenas teve de se comprometer à Konami de que seria fiel ao material original.
Enquanto escrevia o argumento com o roteirista Roger Avary, o diretor ouviu diversos fãs para saber quais elementos não poderiam ficar de fora do filme, tais como: a escuridão com apenas uma fonte de luz, no caso do filme um isqueiro no início, e depois Rose encontra uma lanterna; a estática que anuncia quando um monstro está por perto; os “memos” contendo backstory; a travessia de um prédio adjacente para o outro; o mapa do hospital fixado na parede, que Rose precisa memorizar ao invés de levar consigo; o mapa das ruas, que no filme é o itinerário de um transporte público; as criaturas foram trazidas do game; a transição para o outro mundo, ou melhor, a versão distorcida do mundo real; o elevador que desce até o “inferno”; cenários grotescos; a cratera no meio da rua; os movimentos de câmera; e a neblina, que neste filme foi substituída por cinzas, resultado de um terrível incêndio em uma mina de carvão que intoxicou o ar da cidade. Talvez este tenha sido o primeiro aspecto que irritou os fãs da franquia, por diferir um pouquinho do que eles estavam habituados, porém, em defesa do filme, eu vos digo que apenas três jogos da franquia têm a famosa névoa cobrindo a cidade, os outros possuem variações dela, como a escuridão, gelo, e chuva. Meu outro argumento é que o roteirista se inspirou num caso real de uma cidade na Pensilvânia chamada Centralia, onde um incêndio “controlado” num aterro de lixo se espalhou por uma mina de carvão, os perigos levaram os moradores a abandonarem a cidade, isso aconteceu em 1962. Mais do que todos estes elementos, o filme carrega o mesmo feeling do jogo, sua essência (o que uma adaptação deve reproduzir), enquanto muitas tentam ser literais. Como Christophe Guns foi até o final com o jogo, ele passou por aquela experiência, e soube traduzi-la para o filme.
Tanto falei dos fãs da franquia, eu me considero um, mas um filme como este não deve focar apenas neste público específico, afinal ninguém é obrigado a ter acesso ao material de origem, em uma mídia restrita por sinal****, eu mesmo nunca joguei o primeiro jogo da série. A partir deste ponto quero me distanciar ao máximo do meu lado gamer, e analisar a obra como um filme de terror. Tive várias oportunidades de assistir junto a pessoas que não conheciam o game, não eram o público alvo, e a experiência foi positiva, isso porque o viram como uma obra para o cinema. Primeiramente, quero destacar o elenco, até aquele ponto, o único ator reconhecido era Sean Bean (o Boromir de O Senhor Dos Anéis: A Sociedade Do Anel), o restante eram atores do cinema independente, deliberadamente escolhidos que podiam trazer credibilidade aos personagens e torna-los mais identificáveis; Rose, vivida por Radha Mitchell, carrega uma vulnerabilidade de pessoa comum, mas com uma força e determinação que vai aumentando no decorrer do filme, no início ela apenas reage às criaturas com medo, foge (quem não fugiria?), se desespera quando não vê saída das situações em que se encontra, mas ela também se afirma perante momentos mais assustadores, como enfiar a mão na boca do cadáver no banheiro, ao passar entre as enfermeiras sinistras, e no terceiro ato ela desafia Christabela. O instinto materno fala mais alto nela, e você acredita que aquela mulher faria tudo aquilo, iria até o inferno para encontrar sua filha. A atriz chegou a jogar SH como preparação para este papel, outra curiosidade sobre a composição da personagem, Radha ficou sem lavar o cabelo durante toda a produção do filme, para acrescentar a sujeira acumulada no cabelo durante a jornada; Cybil Bennet, interpretada por Laurie Holden (inicialmente, o diretor queria Cameron Diaz para este papel), tem uma postura autoritária, mas simpática o suficiente para acreditarmos que ela arriscaria a própria vida para salvar um garotinho que foi jogado num poço, e quando é queimada na fogueira, sentimos pena dela, pois vemos que ela não é amparada pela mãe que clama, e porque seu ato heroico, mesmo em desvantagem, permitiu que Rose prosseguisse na sua missão. Vemos um instinto materno latente na personagem, que ajuda uma mãe a resgatar sua filha; Dhalia Gillespie é interpretada por Deborah Kara Unger, nós vemos a fragilidade da personagem, traumatizada pela perda da filha, e por isso vive no seu próprio inferno. A personagem fala sussurrando na maioria de suas cenas, mostrando que Dahlia não é forte o suficiente para falar por si própria; Alice Krige interpreta Christabella, que quando aceitou o papel, não sabia que era inspirado em um game. Esta personagem poderia facilmente se tornar uma caricatura, gritando “DEAMON!”, mas com uma dosagem certa de obsessão a vemos como uma fanática capaz de manipular as mentes fracas e doutrina-las. Para quem acha sua personagem inverossímil, basta procurar por Jane Whaley no seu buscador, e os resultados o deixarão estarrecidos; Jodelle Ferland interpreta três papéis diferentes: Sharon Da Silva, uma menina inocente, Alessa Gillespie, uma menina vitima de acusações e abusos, e Dark Alessa, a personificação de todo o mal presente em Alessa, o arquétipo do “shadow self” do Carl Jung. Um trabalho difícil considerando que foi dado a uma criança, ainda inexperiente. Quando foi escalada para o papel, Christophe Guns teve uma conversa séria com a pequena Jodelle, “você irá interpretar três personagens… e um deles será o diabo”, ao que ela respondeu “que bom! Eu sempre quis interpretar o diabo!”, é o tipo de coisa que deixaria pais conservadores preocupados, quem sabe até a internariam, o roteirista Roger Avary chegou a pedir desculpas aos pais de Jodelle por qualquer trauma que a menina viesse a sofrer, causados pelo filme. Posteriormente, Jodelle interpretou outra bruxa no cinema, a pequena Aggie em Paranorman (2012).
Existe uma máxima em filmes de terror que é situar a história em locais confinados, enclausurados, claustrofóbicos (não digo que isso seja uma regra, mas um artifício para provocar tensão). Silent Hill, tanto o filme quanto o jogo, trazem o enclausuramento para todo o ambiente da cidade, as protagonistas não podem sair de lá, pois as ruas estão destruídas, a ponte de acesso à cidade já era, e a baixa visibilidade corrobora com o medo daquilo que pode estar à sua frente, mas você não vê. Durante a faculdade de Arquitetura e Urbanismo, um dos exercícios que tentava fazer era atribuir uma personalidade à cidade, e Silent Hill com sua atmosfera corrompida reflete isso em seu povo, corrompido pela fé cega, o estado em que a cidade se encontra também reflete em Alessa, tanto a cidade quanto a menina foram queimadas, feridas pelo próprio povo. Uma coisa que me impressiona nos cenários deste filme é a riqueza de detalhes, e a sensação que eles passam. Existem três variações para Silent Hill (quatro se você contar o mundo em que Christopher e Gucci se encontram): a versão de 30 anos antes, quando a cidade era próspera, viva. Apesar de serem poucas cenas passadas neste período, e sob um filtro granulado, são cenas eficientes, a paleta de cores é rica comparada às outras variações, um pouco saturada; a SH do presente está coberta em cinzas, nós percebemos a ação do tempo, tanto nos ambientes internos quanto externos, um mérito da designer de produção Carol Spier. O lugar é o mesmo, mas percebemos o envelhecimento, as paredes descascadas, as cinzas acumuladas, ruínas, tudo isso nos conta a história daquele local; a terceira é a SH das trevas, também é o mesmo lugar, mas em uma realidade distorcida, enferrujada, mesmo sendo dia a escuridão toma conta, os demônios internos tomam forma. É interessante observar que Rose entra neste mundo quatro vezes durante o filme, a cor vermelha é cada vez mais incorporada ao cenário, de início há uma leve camada de ferrugem, mas na última vez, no Hospital as paredes estão completamente cobertas de sangue.
Meus cenários favoritos são os da Escola Midwich – acabou de me ocorrer duas coisas: a terminação “wich” se parece com “witch”, que significa “bruxa”, mas talvez eu esteja forçando a barra com isso. A outra coisa é que Midwich é o nome da cidade fictícia de The Midwich Cuckoos, livro de John Wyndham, que gerou dois filmes, A Cidade Dos Amaldiçoados (1995) de John Carpenter e A Aldeia Dos Amaldiçoados (1960) – que englobam as três variações do mundo. Mesmo na versão do passado, eu imagino um ambiente hostil, onde as colegas praticam bulling e em seguida saem para o recreio brincar de amarelinha, e ainda que seja uma escola para meninas, um faxineiro homem é contratado, é claro que isso não acaba bem quando ninguém está olhando.
Depois de concluir minha graduação em Arquitetura e Urbanismo, gosto de observar algumas escolhas no partido arquitetônico da “igreja” onde Christabella realiza a cerimônia, coloquei esta palavra entre aspas porque certamente era intenção que esta não se parecesse com uma igreja católica convencional, o acesso principal passa por um cemitério, a fachada dela remete a um templo maçônico, e no interior, um design simples e direto, não há um altar com um púlpito e uma mesa no centro, mas sim um local circular para rituais. Ao invés de afrescos da paixão de cristo, há uma pintura de uma bruxa sendo queimada – é possível reconhecer a personagem Dhalia na fogueira, não afirmando que seja ela, pode ser uma ancestral com semelhanças físicas, assim como uma possível ancestral de Christabella também é vista na pintura na posição de acusadora, mostrando que não houve nenhum avanço – não há crucifixos neste templo, o que pude observar são as vestimentas dos mineradores penduradas no teto, como se estas estivessem crucificadas. Automaticamente remetemos a pintura à queima de bruxas durante a inquisição espanhola, para ser mais preciso, esta se inspirou numa ilustração feita por Jan Luyken, representando Anneken Hendriks, amarrada a uma escada, queimada em Amsterdã como uma mártir anabatista em 1571. Para os cinéfilos de plantão, a bruxa amarrada à escada remete ao filme Dias de Ira (1943), do diretor dinamarquês Carl Theodor Dreyer.
Quem explorou os games como eu, sabe como é andar pelas ruas de Silent Hill, uma sensação que Christophe Guns soube transportar para o seu filme. A cidade fictícia é interiorana, suas ruas são estreitas, contém becos que levam aos fundos das casas, seus edifícios não ultrapassam os 9m de altura – como se a cidade toda estivesse numa área de adensamento básico, o que faz sentido, pois o solo de SH está comprometido pela mineração –, lojas, edifícios com estabelecimentos comerciais no térreo e apartamentos nos andares superiores, durante o jogo sabemos que são apenas cenários construídos sem acesso, como cenários montados para uma cidade cenográfica, porém Carol Spier, designer de produção, deu um passo extra e encontrou uma cidade real com as mesmas características arquitetônicas da cidade fictícia, para as filmagens externas, Brantford, uma cidade não muito longe de Toronto. A equipe se aproveitou do fato de que alguns estabelecimentos estavam fechados para reformas, para interditar um trecho da Rua Colbourne e modificar as fachadas, fazendo parecer que a cidade ficara abandonada por 30 anos, em ruínas, cobertos por fuligem. Outro cenário externo que merece um comentário é o pequeno morro onde vemos pela primeira vez a criatura com os braços presos ao corpo, um cenário construído num ambiente fechado, para que pudessem ter controle da névoa, e descartarem o uso de CGI.
Não fossem as criaturas que povoam Silent Hill, esta cidade seria apenas mais uma cidade amaldiçoada. O conceito é que estas são projeções que as pessoas trazem consigo, por isso o segundo jogo da série possui enfermeiras sinistras e um algoz, para fazer referência à doença da esposa do protagonista e seu sentimento de culpa respectivamente. Terror em Silent Hill reutiliza este conceito lovecraftiano e vários monstros do game. A primeira criatura com a qual nos deparamos (tanto no filme quanto no primeiro jogo, ambos no mesmo contexto e cenário) tem a estatura de uma criança, e seu grito se assemelha ao choro de um bebê. O Gray Child do filme parece distorcido tem a pele descolada e movida para trás, e diferente do jogo, este ser possui olhos; o Lyin Figure é a primeira criatura que encontramos no segundo jogo da franquia, não tem braços nem rosto e joga ácido de uma abertura no tórax, o design da criatura o faz parecer como se usasse uma camisa de força. Tanto no jogo quanto no filme este ser perambula fora do mundo da escuridão; Colin, o zelador, é o único monstro do filme que não foi tirado de nenhum dos jogos (e não deixa de ser coerente com os outros monstros), possui os pés amarrados à cabeça com um arame farpado, o contexto no qual esse personagem aparece sugere estupro, e o ator por trás da fantasia evidencia isso pelos movimentos lascivos com a língua; o Pyramid Head é o vilão mais icônico da franquia – tanto que outros games que o sucedem têm a sua variação do Pyramid Head, como o Butcher em Silent Hill: Origins (2007), e o Boogeyman em Silent Hill: Downpour (2012) – como disse antes, este monstro se parece com um farricoco, que representa um carrasco na crucificação de Jesus Cristo, no universo de SH, o Pyramid Head tem o mesmo significado. No filme ele parece ser mais alto (Roberto Campanella, o coreógrafo que interpreta o vilão, usa sapatos de plataforma de 38 cm para ficar mais alto), mais intimidador, consegue arrancar a pele de uma pessoa com um puxão, e sempre carrega um facão gigantesco e pesado; As Enfermeiras também são personagens icônicos do segundo game, mesmo sendo zumbis sem rosto, têm um figurino que propositadamente as sexualiza, afinal o sexo é um dos temas que os games abordam. Elas aparecem nos corredores subterrâneos do Hospital onde Alessa foi internada; e por último, a própria Dark Alessa, uma versão que incorpora todo o seu lado negativo.
Todos os monstros de Terror em Silent Hill parecem estar sofrendo seus próprios tormentos, e não conseguimos desviar os olhos deles, o diretor Christophe Guns disse para o maquiador Paul Jones, “Eu não quero criaturas nojentas, eu quero perturbadoras”, perturbadoras o suficiente para nos forçar a ver o que está diante dos nossos olhos e se questionar “será que eu vi aquilo direito?”, enquanto uma criatura nojenta, como no filme A Mosca (1986), basta olhar para o Seth Brundle em estado de transformação que sentimos ânsia de vômito e desviarmos o olhar. Ao vermos os monstros, acreditamos que aquelas coisas poderiam ter saído de um pesadelo, ou da própria Silent Hill, e acreditarmos na veracidade delas – durante o ensino médio, alguns de meus amigos debochavam dos monstros nos filmes de terror, coisas do tipo “dá pra ver o zíper na fantasia”, ou “dá pra ver a cordinha puxando”, eu duvido que estes amigos fariam tais comentários a respeito dos monstros neste filme, mas eu relevo estes comentários, porque são artifícios para esconder o medo que sentiam – O fato de serem atores ou coreógrafos por baixo da fantasia convencem muito mais do que se fossem criados por computação gráfica, as enfermeiras, por exemplo, são bailarinas coreografadas por Roberto Campanella, que por sua vez têm a flexibilidade desejada para tornar os movimentos perturbadores, o espectador sabe que há uma mulher por baixo de uma fantasia, mas elas se movem de forma estranha, como bonecos e isso causa uma certa perturbação. Seus movimentos erráticos quando elas estão despertando foram criados ao filmá-las se movendo de trás para frente, e revertendo as filmagens na edição, uma técnica simples, mas que causa uma certa estranheza.*****
De volta ao final da minha adolescência e início da fase adulta, época em que fui apresentado a Silent Hill 2, além do jogo para PC, também possuía um CD com a trilha sonora do mesmo, e a escutava enquanto estudava (música para relaxar, afinal não dá para estudar ouvindo heavy metal), e até mesmo acertava o aparelho de som como despertador, para me acordar com este CD. A trilha sonora de SH estava tão impregnada na minha cabeça que quando assisti ao filme pela primeira vez, reconheci cada música e em que momento no jogo ela é tocada. Composta por Akira Yamakoa, a música do primeiro game da franquia seguia um estilo que poucos conhecem hoje em dia chamado Trip Hop, um estilo musical nascido em Bristol na Inglaterra, consiste em músicas eletrônicas lentas, com instrumentos convencionais e acústicos, como a banda Portishead (escute Sour Times sem se matar, e você perceberá as semelhanças), com o acréscimo de um som contínuo que deixa a trilha com um aspecto mais sinistro. A trilha sonora de SH pode ser dividida em três categorias: 1) aquela em que a tensão no jogo faz uma pausa para podermos respirar; 2) trilha que inspira melancolia; 3) trilha frenética como um trem descarrilhado. Christophe Gans queria que todas as músicas do filme viessem dos games, contudo, o contrato da produção do filme requeria um compositor canadense envolvido, assim, Jeff Danna (de O Bom Dinossauro) foi contratado para remixar as trilhas compostas por Akira Yamaoka. Além das músicas instrumentais, duas canções compõem a trilha sonora do filme, ambas pertencentes ao terceiro jogo da franquia, cantadas por Mary Elizabeth McGlynn, “Letter – From the Lost Days”, toca no rádio de Rose quando ela está fugindo de Cybil, entrando em Silent Hill, no game também é tocada no rádio de um carro, durante uma conversa entre Heather e o Detetive Douglas Crevant; “You’re Not Here”, toca durante os créditos finais do filme, e durante uma apresentação no game; mas uma música no filme me chamou a atenção por não estar ligada a nenhum dos jogos da franquia, “Ring of Fire” do Johnny Cash, que toca num junkebox assim que Rose acorda após sua primeira incursão ao mundo da escuridão, a música se encaixa no contexto do filme já que na letra Cash diz “I fell in to a burning ring of fire / I went down,down,down / and the flames went higher. / And it burns,burns,burns / The ring of fire” (Eu caí num círculo de fogo ardente / Eu descia, descia, descia / E as chamas subiam. / E queima, queima, queima / O círculo de fogo) que remete ao grande incêndio que a cidade sofreu.
Em tempos de intolerância, nos lembramos das vezes em que alguns dos nossos filmes favoritos sofreram boicote, tanto por parte das distribuidoras quanto por parte do público, Procurando Dory (2016) sofreu boicote por mostrar um suposto casal de lésbicas com um carrinho de bebê, Star Wars: Episódio VII – O Despertar da Força (2015) sofreu boicote por parte do público por ter como protagonistas uma mulher e um negro. Curiosamente, uma década antes, Terror em Silent Hill também sofreu boicote por parte da produtora Tristar, o roteiro original possuía apenas personagens femininos, o estúdio exigiu que fosse reescrito e personagens masculinos fossem acrescentados, assim o personagem Chris da Silva foi introduzido, no tratamento seguinte Chris aparecia apenas no início e no final do filme, e conforme o seu papel foi crescendo em cada reescrita, introduziu-se outro personagem masculino, Thomas Gucci. Os dois personagens aparecem simplesmente para fazer exposição, e mostrar que a Silent Hill que Rose e Sharon se encontram pode ser um mundo paralelo, como vemos na cena do pátio interno da Escola. Embora Cristophe Guns tenha sido forçado a acrescentar personagens masculinos em seu filme, o diretor teve o devido cuidado para que as personagens femininas permanecessem com a mesma força, prova disso é que o filme passa no Teste de Bechdel, este teste existe para verificar se a mulher não está sendo retratada de forma preconceituosa, para ser aprovada, a obra deve satisfazer os seguintes requisitos: 1) Deve ter pelo menos duas mulheres. Sim, várias delas na função de protagonistas; 2) Elas conversam uma com a outra. Com certeza. 3) Elas conversam sobre alguma coisa que não seja um homem. Não há um diálogo entre elas que seja sobre algum personagem masculino, mas sim sobre a situação em que se encontram, e a própria cidade. Portanto Terror em Silent Hill passa no teste de forma tranquila, eu sugiro que você aplique estas questões a outros filmes que você conheça.
Terror em Silent Hill se destaca como uma boa adaptação de um filme baseado em game, talvez a melhor até o momento, embora tenha divergências quanto ao material original (principalmente os personagens, e os acontecimentos que se passam no mesmo universo), sabe explorar seus aspectos e temas essenciais, e isso o torna um produto próprio (sem pretensão de continuar, reiniciar ou reproduzir a história), que não requer conhecimento do material prévio, embora neste texto foram extrapolados os limites do filme, atentando aos jogos no qual este filme se inspira, no intuito de enriquecer a experiência e tentar compreender como tal obra foi concebida. Como um filme de terror ele cumpre o papel fundamental: desafiar o seu espectador. Uma história que se passa ao final do século XX e início do século XXI onde uma comunidade ainda queima bruxas nos faz questionar a própria fé e o fanatismo. O filme nos mostra como o fanatismo religioso é algo perigoso, pode deixar as pessoas na escuridão e é capaz de manipulá-las. Uma criança com dons divinos (Alessa) é amarrada a uma fogueira para ser queimada e assim obterem a “purificação”, da mesma forma que há dois mil anos atrás um homem com dons divinos e pregava a paz foi preso a uma cruz para pagar pelos nossos pecados, ou seja, “purificação”. O filme contrasta duas personagens, a primeira é Crhistabella, a líder religiosa que alimenta o medo em seus fiéis, ela se vê na posição julgadora e decide quem deve ir pra fogueira por qualquer motivo; em contraponto com ela temos Rose, que quando questionada se é uma mulher de fé, não responde com um “sim” ou “não”, mas com “eu amo a minha filha”, e é capaz de ir até o inferno e dar um abraço no capeta para salvá-la. Alguns leitores podem achar exagero da minha parte ao dizer que o fanatismo ainda acontece, basta desprender alguns minutos numa busca pelo Google para ver que isso nunca deixou de existir, e os rumos que a nossa sociedade está tomando podem fortalecer cada vez mais o fanatismo, seja político, religioso, futebolístico, etc. E não nos esqueçamos da personagem Anna, que quando a escuridão chega, se preocupa muito mais em atirar pedras numa mulher desamparada, que acaba sendo pega pelo algoz.
Depois que esse filme foi lançado, Christoph Guns tinha planos para uma sequência, porém ele abandonou o barco por ter outros projetos em mente, as rédeas da direção foram assumidas por Michael J. Basset. Roger Avary deveria voltar à sua função como roteirista, porém ele foi preso por dirigir alcoolizado e causado um acidente fazendo uma vítima, assim Michael J. Basset acumulou mais esta função para si, e assim foi lançado Silent Hill: Revelação 3D (2012), que se baseou inteiramente no terceiro jogo da franquia. Heather, vivida por Adelaide Clemens, é a melhor coisa do filme, mesmo assim não chega aos pés da personagem na qual é baseada, o filme falha como uma adaptação do jogo por não conseguir recriar a atmosfera deste, e falha como um filme de terror por não saber criar momentos de tensão e nem explorar ideias, nem mesmo Jon Snow consegue salvar este filme (sim, o Kit Harington está nesse filme), nem Malcolm McDowell e nem Carrie-Anne Moss. E para piorar, o filme termina fazendo referências gratuitas a Silent Hill: Origins (2007) e Silent Hill: Downpour (2012), talvez com o intuito de dar abertura para mais um filme que nunca aconteceu e nunca acontecerá, pois a franquia parece estar morta e enterrada, a última tentativa de gerar mais um filho foi com P.T. (2015) – nada a ver com o partido político, na verdade a sigla significa Playable Teaser – para o Playstation 4, dirigido por Guillermo Del Toro (ele mesmo), cancelado em abril de 2015 quando Hideo Kojima, outro diretor envolvido com o projeto, deixou a Konami. A produção do jogo foi cancelada, e o demo foi retirado da Playstation Store, portanto, se o seu PS4 ainda possui P.T., considere-se um felizardo.
Para quem busca uma experiência mais forte do que um jogo pode proporcionar, existe uma cidade conhecida como a Silent Hill brasileira, Paranapiacaba, onde uma densa neblina a cobre durante o dia, terra de muitas lendas como vistas neste site. A vila pertence à cidade de Santo André, no ABC Paulista, região metropolitana de São Paulo, a entrada é gratuita, sinta-se à vontade para visitar a cidade, não se esqueça de fazer o convite aos editores deste site e ao autor deste texto.
* O termo “psicótico” remete a um distúrbio psíquico, uma das características é que o indivíduo cria realidades alternativas em sua mente, e acredita nelas.
** Para esclarecer aos leitores mais jovens, uma locadora de vídeo é um estabelecimento que contava com um acervo de diversos filmes, e games, onde o cliente cadastrado poderia alugar a mídia por um tempo determinado.
*** Uma das poucas refilmagens de filmes de terror japonês que realmente funciona é O Chamado (2002), de Gore Verbinski.
**** Aqui levanto a questão da “caixa preta”. Meu PS3 infelizmente se tornará obsoleto no futuro, se é que já não se tornou, uma vez que os jogos para ele lançado funcionam apenas nesta plataforma. Da mesma forma o primeiro game da franquia Silent Hill foi lançado somente para o PS1, como um produto do seu tempo e, a partir do momento em que o console sai de linha, o jogo fica apenas no coração daqueles que viveram aquele momento. No início do texto disse que ainda possuo um Super Nintendo que ainda funciona, e de vez em quando o ligo por questões nostálgicas, mas não são lançados novos jogos para este, e nem sequer encontro disponíveis para venda, a não ser pelo Mercado Livre ou das mãos de colecionadores. O fenômeno “caixa preta” se aplica a todo tipo de eletrônicos, o DVD veio para substituir o VHS, e o Blu-ray veio para substituir o DVD, felizmente neste caso a chegada de uma mídia mais avançada não ocasionou a morte prematura da anterior, isso porque o DVD ainda pode ser reproduzido e comercializado. Quem mais sofre com isso são os aficionados por tecnologia, que sentem impulso por comprar o último modelo de celular lançado.
Outro motivo pelo qual o game é uma mídia restrita, bem, desconsiderando questões como valores, não é algo que encontramos “em todos os lares”, como uma televisão ou um computador, não é uma mídia consumida por todas as idades, afinal, você não vai à casa da sua avó e encontra o PS4 dela plugado na TV, simplesmente porque ela não possui um e não tem interesse em jogos de ação, e/ou não existem jogos voltados para este público. Aponto que este conceito irá mudar conforme a geração de gamers for envelhecendo. Na minha infância, a maioria dos games tinham uma premissa bem simples, uma estética infantil, e conforme fui crescendo, se tornaram mais maduros e sofisticados, de maneira que quando me tornar um idoso, já teremos os jogos para os vovôs e vovós.
*****Esta técnica foi utilizada também para os movimentos da Samara Morgan saindo do poço em O Chamado (2002), e para a Lucy entrando no caixão em Drácula de Bram Stoker (1992).